Paulo Gomes – 2011

Como um mesmo caminho pode dar em um lugar diferente ou Algumas interrogações sobre objetos

O trabalho de Eny Schuch passou por caminhos diversos: sua origem está na escultura, no embate com a matéria e sua impositiva tridimensionalidade; depois veio vídeo, essa imaterialidade feita de luz e, após, a sua colocação no espaço como um híbrido, a vídeo-instalação, pois a tela que o suportava tornou-se reduzida e redutora. Retornamos agora aos objetos escultóricos, a escultura mesma, na sua forma fundada: o bloco de argila ou gesso, matéria prima primordial, associado à técnica primitiva do modelado; as mãos criando formas que recebem, no seu interior, os recursos contemporâneos da tecnologia.

Começo por aqui: “O objeto artístico não é a ilustração de um conceito ou teoria. Ele é uma visão do mundo, com uma forma de inteligência que não é forçosamente a inteligência discursiva, racional. São as formas da intuição, da sensibilidade. A gente tem que chegar para ele e perguntar”1. Outro começo: “O pressuposto fundamental para a pesquisa em artes plásticas

pode ser enunciado da seguinte maneira: toda obra contém em si mesma a sua dimensão teórica”2. São duas afirmativas críticas, duas propostas conceituais, duas sinalizações de rumo, duas maneiras de ver a arte.

Sobre a irredutibilidade da obra de arte e pelas questões decorrentes desta afirmação, sabemos que, se a obra é irredutível a um conceito ou teoria, ela não é, entretanto, impermeável à investigação de seu processo de constituição e recepção. É sobre estes processos de constituição e recepção que se escreverá daqui para frente.

A primeira questão que surge é sobre como classificar as peças: são objetos, pedras vivas, vídeos objetos, objetos sonoros? A artista as denomina de dois modos: vídeos objetos e objetos sonoros. Manteremos como recorrência dominante a idéia de objetos: objetos não são esculturas, isto é, não estão destinados a serem apenas vistos, mas também se destinam a um uso, já que esta é a característica dos objetos. No léxico, objeto é definido de diversos modos: como coisa material que pode ser percebida pelos sentidos; como coisa mental ou física para a qual converge o

pensamento, um sentimento ou uma ação; fonte luminosa ou corpo cuja imagem se pode formar através de um sistema óptico; aquilo que é discriminado no ato da percepção, representação ou pensamento pela universalidade dos indivíduos, independente dos desejos e opiniões destes3. Na arte contemporânea, os objetos fazem parte de uma categoria ampla, que está aquém da escultura, visto que não se destina à representação de nada, apenas é e está ainda além da escultura, visto que a ele é atribuído um caráter utilitário, que a escultura, rigorosamente falando, não tem. Num léxico da arte, ele é descrito como “coisa que é colocada defronte, o que objeta. […] Um objeto não pode ser rotulado de pintura ou escultura. Trata-se de buscar uma expressividade em si mesma, uma linguagem objetiva”4.

Esses objetos sonoros ou vídeos objetos (que poderiam também ser chamados de objetos vídeos, visto que a troca não altera sua realidade mesma) não se destinam a serem questionados no seu caráter ontológico, pois eles são. Ponto. Ao que, afinal, eles se destinam? O que, afinal, eles propõem? Já que eles foram fabricados e, tão pouco, saíram do cotidiano, a intencionalidade de sua

execução já os destina a outro futuro: serem interrogativos. Essa interrogação é, por si mesma, uma razão para a sua existência e sua realidade: fazer algo para ser visto e tocado. Uma interrogação que vem potencializada pela inserção dos sons e das imagens.

Os sons participam desse processo numa confirmação de que superamos a época da divisão das artes em obras do tempo e em obras do espaço. Objetos sonoros e vídeos objetos trazem em si uma alma pulsante, perceptível pelos sentidos além da visão. A redutibilidade da visão, com sua capacidade de inserir qualquer objeto ou imagem do mundo num contexto, além de óbvia, é clara e ainda configuradora. Já a audição e o tato são mais amplos, pois são menos explorados: conhecer pelo toque e pela audição remete, evidentemente, à visão, mas a uma visão evocadora, mais aberta aos sonhos, à imaginação, às possibilidades.

Quando pego um desses objetos sonoros, com seus sons de chuva, de fogo, de respiração ou de um coração batendo, não tenho certeza do que tenho nas mãos. A contradição se faz, presente pois a inércia

do objeto de cerâmica ou gesso, com sua plenitude e integridade, se altera e se torna móvel, potente e vivo, pois sentimos sua matéria, fria ao primeiro toque, mas logo cálida e suave e mesmo macia. Como administrar um objeto que respira, ou do qual, pelo menos, eu ouço a respiração? Outra pergunta se impõe: como administrar um objeto que nos interroga? As imagens de mãos, do olho de um cavalo, de gatos e ainda as paisagens, como a praia, agregam outras potências ao propor o óbvio das artes visuais, a imagem, mas uma imagem interrogante, inquieta, não complacente.

Em resumo, a questão que se sobrepõe a todas é a da recepção desses objetos. Eles acabam com nosso conforto de recorrer ao repertório de formas, gêneros e conceitos para imediatamente enquadrá-los. Transitando entre a tradição da manualidade e a contemporaneidade da tecnologia, eles são híbridos, múltiplos, multisensoriais e, logo, inapreensíveis apenas através de um só dos sentidos. É necessário, além da visão, do tato e da audição, apelar também ao olfato e ao paladar, pois somos irresistivelmente levados a cheirá-los (para

adivinhar de que matérias foram feitos), ou mesmo prová-los, como uma criança descobrindo as coisas do mundo, recorrendo aos sentidos indiscriminadamente, pois a totalidade é a ambição.

Essa coleção de objetos, com sua diversidade de formas, cores, texturas, sons, imagens em movimento, traz em si o segredo de sua própria origem e destinação. Mesmo que os desamarre, abrindo-os como caixas, como fósseis, como frutos, não conseguirei mais do que uma constatação da obviedade estampada na sua realidade mesma: objetos escultóricos cerâmicos com equipamentos eletrônicos de som e imagem. Como os antigos, tentamos entender as obras dissecando-as, buscando a magia da sua forma física: abri e dissequei esses objetos e não encontrei suas almas. Busquei através dos caminhos do trabalho – a escultura e as novas tecnologias – a sua alma, mas ela não está em lugar algum. Fica a interrogação: como o trabalho de Eny Schuch, coerente e sistemático, ao refazer caminhos já trilhados, pode chegar a um lugar tão diferente?

Paulo Gomes

Artista e Crítico de Arte

Notas de rodapé:

1 Jorge Coli em entrevista a Eduardo Veras, Zero Hora, Segundo Caderno, p. 6, 10 de setembro de 1994.

2 Sandra Rey, in Três instâncias metodológicas da pesquisa em artes (Porto Alegre: Porto Arte, 13, p. 89). Grifo da autora.

3 Conforme Antônio Houaiss, in Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (RJ: Objetiva, 2004, p. 2041-2042).

4 Frederico Moraes, in Panorama das Artes Plásticas – Séculos XIX e XX (SP: Instituto Cultural Itaú, 1991, p.157).

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